domingo, 12 de fevereiro de 2023

DESTAQUE NO TRIGÉSIMO OITAVO CONCURSO INTERNACIONAL DA ALPAS

HOMENAGEM À QUERIDA REJANE BONADIMANN 



O AMOR É AZUL

Estavam apaixonados. Ao luar, pertinho do mar, ela lhe dizia ao ouvido amorosamente: “O amor é azul, seu cheiro está impresso em minhas digitais. Sinto-o comigo. É como se nunca tivesse sido eu, sozinha, sem você... É como se este seu odor me aquecesse desde sempre.”

Não era a primeira vez que ela, tímida, se sentia assim. Às vezes, em álbuns de fotos antigas, vinha em sua mente a mesma cor do amor, o mesmo odor da bondade. Certa vez perguntou à mãe por que ela, sendo menina, vestia azul. E ouvira aquela mesma resposta: “Porque é a cor do amor.”

Eles se conheceram pelo virtual. Ela, oferecendo residência para quem estivesse precisando de moradia num intercâmbio cultural, nos Estados Unidos da América. Ele, procurando estadia, enquanto estivesse fazendo seu mestrado por lá. Ficaram amigos de imediato. Respeitoso, o sentimento foi crescendo, enquanto moravam juntos com toda a família dela, apoiando os estudos do rapaz. A mãe da menina, carinhosamente lhe fazia as melhores refeições, tudo o que se pode oferecer de bom no Brasil, país rico em Gastronomia e criatividade culinária.

A garota, que se expressava bem em três idiomas: Português, Inglês e Espanhol, não tinha nenhuma dificuldade em dialogar com o rapaz, que só conseguia se expressar na Língua Portuguesa. Ela passou a ajudá-lo nas leituras, nos trabalhos escritos e em tudo o que ele necessitava. A amizade foi crescendo. O amor cada vez mais era azul.

Um dia ele lhe perguntou: “Como foi que você conseguiu sair do Brasil e aprender tão bem o Espanhol e o Inglês?” – Ao que ela respondeu: “Saí do Brasil com poucos dias de vida e me mudei para a Espanha. Cresci falando duas línguas: a do meus pais e a do país que me abraçou. Mais tarde, já adolescente, viemos para os Estados Unidos e então, aprendi o Inglês.”

Não falaram mais sobre este assunto, embora as perguntas borbulhassem na mente do rapaz. Pela Internet, ele se comunicava com os pais, mostrava fotos da menina, da casa, falava da família, com muito amor. Até o dia em que se confessou apaixonado: “Eu me sinto como se o amor e nosso futuro já fosse escrito por mãos divinas.”

Os pais dele adoraram a foto da garota. Praticamente a mesma idade do filho, apenas alguns meses de diferença. Um dia perguntaram o nome completo dela e era bastante familiar aquele sobrenome. Mas Silva, no Brasil, é extremamente comum.

Certa noite, após o jantar, família reunida e um álbum aberto: fotos da Maria bebê, vestida de lindas mantas e casaquinhos de crochê, todos azuis como o céu. Numa nova conversa com os pais, pela Internet, Leonardo confessou: “Mamãe, Maria ama o azul. As fotos dela se parecem com as minhas. Será que você poderia me enviar algumas para eu matar minhas saudades de vocês e do meu passado?”

Pedido feito, ações concretizadas. Os pais choraram ao se lembrar daquele período mágico, em que receberam de Deus, tamanho presente! Quando Leonardo nasceu, seu enxoval todo azul, foi um encanto bordado e tricotado pelas avós materna e paterna. A mãe não tivera dúvidas ao doar tudo aquilo àquela bebê, que nasceria antes de que os pais embarcassem para a Espanha. A mãe, grávida, era sua babá e cuidava de seu primogênito com muito amor, enquanto ela terminava os estudos na Faculdade de Artes. A moça não tinha nenhuma peça para a criança que logo iria nascer. E também não tinha nenhuma possibilidade financeira de comprar algo, já que todas as economias do casal foram direcionadas para essa viagem de mudança de país. No novo lar, o marido já tinha emprego garantido. Nunca se comentou com o filho sobre este gesto. Até que, já adulto, ele quis saber o motivo de ter tantas lembranças em fotos e objetos e não existir nenhuma peça de roupa de quando o rapaz era bebê. Doação confirmada e esquecida nos retalhos minúsculos da memória.

Quando as fotos chegaram, o casal num uníssono de alegria teve o insight. Já não havia dúvidas: Ele, Leonardo; ela, Maria, estavam escritos nas estrelas, com as mesmas roupinhas azuis!

Liz Rabello


quarta-feira, 8 de fevereiro de 2023

 

MEMÓRIAS EM BRANCO E PRETO
Ao me deparar com uma foto antiga de um rádio, viajei por minhas memórias. O nosso era movido à eletricidade, ficava em cima de uma geladeira e só funcionava no tranco. Era preciso lhe dar um tapa. Eu me lembro das novelas, de como a gente chorava, ouvindo as cenas trágicas. O mais incrível eram os jogos de futebol. Nunca consegui entender como papai decifrava aquela correria toda. Signos e bolas. Goleiros e jogadores. Árbitros e palavrões. Tinha muito dó da mãe dos juízes. Música? Memória de mel: "Que beijinho doce que ele tem. Depois que beijei ele, nunca mais amei ninguém." Anos mais tarde, na casa da esquina, uma TV para todos: Chico Buarque: Eu me lembro de chorar, emocionada pela minha gente humilde, diante de uma TV, apaixonada pelo brilho dos seus verdes olhos em branco e preto.
Liz Rabello

 

MUTAÇÕES DE PEDRAS
Estava na chácara e meu dente implantado caiu. Por sorte, intacto. Após escová-lo e guardá-lo com cuidado, telefonei ao dentista e marquei consulta às oito e trinta, para a quinta-feira. Levantei na quarta, cedinho, e fiz limpeza na chácara. Peguei estrada e voltei para a capital. Cheguei exausta e fui dormir. Descansei e acordei acesa. Não tinha sono. Coloquei o celular para me despertar às sete. Assim daria tempo para ir ao consultório.
Acordei onze e meia. Apavorada, corri ao banheiro, lavei o rosto. Escovei os dentes e pensei: "Vou assim mesmo, fora de hora, preciso retirar esta pedra do meu caminho". Nem quis banho. Coloquei a primeira roupa que vi à frente, e, ao pentear os cabelos, força do hábito, sorri para o espelho. Pasma, meu dente estava lá... Luzindo de novo!
Demorou para cair a ficha. Tinha acordado atrasada e ido ao dentista. Ao voltar, dormi tão profundamente, que apaguei da memória os últimos instantes.

Para piorar a história, estava procurando algo para pintar bolinhas num quadro. O cotonete era grande demais. Precisava de algo menor. Encontrei na minha bolsa um aparelhinho. O que seria aquilo? Não sabia o que era, muito menos de como viera parar dentro da minha bolsa. Pintei as bolinhas do meu quadro, sem pestanejar. De repente, passe de mágica, numa propaganda de aparelhos dentários, eis que aparece o aparelhinho, que servia para limpar dentes. Eu o ganhara de presente do meu dentista quando lá estive e me esqueci do fato.
Será que estou com começo de mal de Alzheimer?
Liz Rabello