JAMAIS DEIXE DE LER AS ENTRELINHAS
Nunca são bobas as palavras, nem tolos os desenhos. Certa vez uma faxineira trouxe o filho ao trabalho. A criança agitada e infeliz me angustiava. Dei-lhe vários lápis coloridos e papel em branco. Foi assim que o vi pela última vez: desenhando. Mais tarde soube que o menino pediu à mãe para ficar sentado no portão. Ela permitiu. De repente, cadê a criança? Desapareceu num passe de mágica. Aos gritos, a mulher me chamou e juntas fomos pelas ruas procurando o garoto. Nada, voltamos, peguei a chave do carro, dirigi por toda redondeza. Parei no parque. Um bando de moleques jogando bola. Mas o menino não estava lá. A mãe, a esta altura, chorava convulsivamente. Chamou por telefone a filha mais velha, que junto com o noivo veio em seu socorro. Foram os três à Delegacia mais próxima. Eu me sentei desanimada diante dos desenhos e comecei a olhá-los. Da primeira vez que li, nada entendi. Comecei a repassá-los; desta vez de trás para frente: Uma criança sentada no portão. Outro desenho, uma curva. Duas curvas... Um parque... Outra curva... Uma rua muito comprida... Árvores... Parecia um cogumelo... Um morro e no topo, um monte de casinhas derrubadas... Tornei a olhar. Virei o desenho do cogumelo, meio de lado e descobri: Era a Caixa d'água da SABESP. Quando senti o insight, dei um grito. O menino desenhou um mapa. Roteiro de fuga. Chamei a mãe de volta. Ela rodopiou de alegria. O garoto estava na favela, onde seus amigos perderam suas moradias, porque foram desmanteladas pelo progresso... O Carrefour chegara e com ele, a periferia foi levada para além da periferia... O progresso não entende o coração das crianças. Só o papel...
Liz Rabello