NEGO DEZ
Estávamos conversando sobre identidades e sua construção desde a mais tenra idade. Salete, muito orgulhosa do pai, desatou a falar sem parar. Nego Dez. Era assim o nome dele. Na boca do povo, ninguém o chamava de forma diferente. Sempre bem vestido. Roupas limpas, cabelos arrumados, bem cortados, barba feita. Quando a esposa lhe dizia que não havia o que cozinhar, a história era sempre a mesma: “Hoje não tem o que comê, dispois de amanhã tem. Hoje tem o que comê, dispois de amanhã num tem. E amanhã? Bem, amanhã é outro dia...” - E repetia a mesmíssima história contada mil vezes e nunca retocada pelo viés criativo da imaginação: “Quando era boiadeiro e chegava co’a manada, sem nada no estômago pra forrá, num tinha peleja, não! Era água, farinha e açúcar, que nunca fartava, não!” E esta foi a primeira vez no dia em que ouvi falar do significado verdadeiro da fome. Honestidade e trabalho eram suas matrizes essenciais. Seu pavor era morrer velhinho, sem memória, sem dignidade. Dizia que se o homem perdesse a vergonha era melhor partir desta pra outra de vez. Para sua alegria, morreu aos cinquenta e deixou um legado de sabedoria e orgulho de memórias por aqui.
Salete se afastou para dar um beijo em Tula, artista da caneta, dança carimbó, atriz, cantora. Uma negra, que até faculdade já cursou. Falava de sua família e de sua alegria em nunca precisar se prostituir para dar o que comer para os meninos. Viera pra São Paulo, com uma mão na frente e outra atrás, filhos pequenos, sem pai, que se perdeu nos meandros da vida. Sozinha, arranjou emprego de doméstica e um belo dia percebeu que se ali ficasse para sempre não iria progredir. Passou a mão nos trastes e resolveu estudar. Trocou a pia pelo canto, a vassoura pela caneta, o balde pela dança, o pano de chão por um bom livro. E agora, sim, era respeitada. Uma mulher com identidade própria, que antes de mais nada se auto afirmava: Bela, negra, emponderada. E, com olhos úmidos lembrava, dos dias de farinha, água e açúcar, dor no estômago, sem conseguir dormir! E foi assim que pela segunda vez, por acaso ou por dedo de Deus eu ouvi a mesma frase, naquela tarde de descobertas sem tréguas.
Estávamos na II FLIMP, na Galeria Olido, e um escritor lançava seu novo livro: Eloy. Sua irmã chegou, o abraçou, comprou o livro. Ele autografou. Era orgulho da família: um escritor. O mais novo dos seis homens. Ela a caçula de todos. "Somos doze, seis de cada", acrescentou. Mostrou a foto da mãe, idosa com 77 anos, ainda uma bela mulher. Indaguei espantada: “Como conseguiu criar tantos filhos?” - Ela respondeu: Às vezes era farinha, água e açúcar o que tinha pra comer...
Moramos na cidade mais rica da América Latina: São Paulo! É impensável a fome por aqui. Talvez seja por isto que para os eleitores desta região seja tão difícil entender por que Lula é tão importante para o Brasil.
Liz Rabello
(Relato feito ao som de violão de Henrique Vitorino na Casa Amarela, em São Paulo, Capital)