quinta-feira, 16 de julho de 2015

O RESGATE


Sou a filhinha do meio de um casal de vira-latas. A terceira de uma lista de cinco. De mamãe herdei apenas as orelhas em pé e muito aguçadas, atentas a qualquer barulhinho que a mim se apresentasse.


De papai me veio tudo, o olhar carinhoso, bondoso, confiante, o porte capa preta, o corpo alongado. 


Meus primeiros dias de vida foram mágicos, uma família linda. Éramos cinco irmãozinhos a nos empurrar mutuamente para mamar. Mamãe deitava-se de lado e nós devorávamos o nosso leite com fome de quem nunca se alimentou.

Um belo dia, um homem chegou, pulávamos em seus pés enquanto nos lambuzávamos de nossos próprios excrementos.  Atrás dele, outros dois. Fomos para o colo deles sem o menor medo, já que até então, a vida era um mar de rosas.  Vi meus três irmãos serem levados numa caixa de madeira e tristes partiram para nunca mais nos encontrarmos. Fiz carinha de “santo” porque também desejei ir com eles, sem saber ao certo para onde iriam.


Sozinhas eu e Tequila brincávamos o dia inteiro, só parando pra mamar. Eram rasgos de revistas, bagunça com fitas e novelos de lãs da vovó, que com muita paciência vinha nos desenrolar. Verdade que pegava o chinelo, mas como nunca bateu, não sabia o que era dor.


Fazia carinha de sonsa, sapeca, hipócrita peralta e ela me pegava no colo. E ela me enchia de afagos.


Nesta altura já sabíamos o que era luxo, porque já entrávamos na sala e fazíamos das nossas no tapete da vovó.  Pegávamos chinelos, rolávamos pertences, rompíamos almofadas, fazíamos  a maior bagunça e tudo ficava em desordem, só eu e Tequila felizes.

Uma tarde ouvimos barulhos. Gritos fortes, choro ardido.  Vovó caiu da escada e chorava de dor.  Desapareceu daquela casa. Acho que nunca mais andou.  Passos malvados numa rouca voz denunciavam:  Tequila e eu éramos culpados daquela situação.

Arrancados do aconchego do lar, fomos levados a um lugar sinistro, onde só tinha cães. É bem verdade que nos alimentavam. Banhos e cuidados medicinais é o que não faltavam. Vacinas e pouco carinho, porque ninguém tinha tempo pra nós.  Um belo dia chegou uma moça e se apaixonou por Tequila e a pegou no colo e a levou embora. Só ouvi a palavra Rio. E depois “adoção”.


Muitos outros foram chegando e os mais espertos foram indo embora... 


E só eu é que fui ficando...


Um belo dia, ao ver uma fresta de porta entreaberta, passei desapercebida por ela. Fugi. E daí começou minha loucura.  Sem lugar para dormir, fome e sede a me sucumbir.  Nem me lembro de como sobrevivi. Só sei que aprendi a fugir da vassoura, porque muitas pauladas levei.  Só sei que aprendi a fugir dos cachorros, pois queriam me morder. Só sei que aprendi a mexer numa lata de lixo e vira lata realmente me tornei. Só sei que aprendi a fugir do homem de boné, pois um deles muito me bateu. Só sei que aprendi a detestar motoqueiros desde que um deles muitos pontapés me deu. Só sei que aprendi a correr com os carros, porque na Marginal Tietê eu cheguei. Só sei que aprendi  a ficar sem água, porque o cheiro de podre não me fazia bem. Dias e noites assim. Minhas forças já me faltavam. Exaurida parei  num posto de gasolina, sem esperanças, uma tristeza infinita no olhar. Ele me viu... Ou fui eu que o escolhi para amar? Era um anjo.  Olhou-me nos olhos e imediatamente percebi o rosto da bondade e asas de bem me quer.  Sua amiga denunciou: “Esta cadelinha está com sede”. E muita água potável me saciou. Chamou-me de Vareta e o nome ficou, tão magrinha e desnutrida, que mais parecia uma vara a se quebrar. Quando abriu a porta do carro e me convidou para entrar, percebi que minha infernal  peregrinação estava por um fio. Portas do paraíso se abriram e começou então um amor sem fim!


Hoje sou uma princesa e musa de um livro que escreveram pra mim, faço poses e lambidas de agradecimentos sem fim.  Estou nas redes sociais e muito sucesso eu já fiz. Até encontrei minha irmãzinha, que vive feliz lá no Rio, porque foi amada, tanto como eu adotada.


Liz Rabello