quinta-feira, 24 de agosto de 2017


O SEGREDO
Quando cheguei ela já estava aqui. Tinha quase dois aninhos, cabelos lisos, loiros e grandes olhos azuis, que sempre me encantaram. Papai tinha o hábito de nos presentear com bonecas parecidas conosco. Eu não queria a minha, morena, cabelos encaracolados, porque sempre desejei ser como ela. Eu gostava de bordar, ela não. Então fazia os trabalhos manuais para mim e para ela. Os dela eram mais belos e o dez que ela ganhava era um pouco meu. Brincávamos de pega-pega, esconde-esconde, pular corda, passe o anel. Tomávamos banho com água numa lata de tinta que já estava limpa, esquentada em fogueira improvisada. Íamos lindas, iguaizinhas, laços de fita nos cabelos, pastilhas de hortelã para saborear durante as matinés do único cinema do bairro. Assistíamos TV comunitária no casarão da esquina, nas noites em que mamãe fazia o tradicional bolo de laranja. Crescemos grudadas, amigas.
UM SONHO MÁGICO
Foi lindo!  Ela entrou pela porta da cozinha, usava um colar de pérolas, cabelos já brancos, prateados, brilhantes ao sol. Sorria. E eu perguntei: “Você já sabe”? – Amainou a cabeça em afirmativa, sem parar de mostrar que estava muito feliz! Acordei bem, uma sensação de paz muito grande. E uma curiosidade sem limites. Qual era o segredo que o meu sonho guardava?
DESENTENDIMENTOS
Fiquei viúva cedo demais e ela, divorciada, nunca mais se casou. Viajávamos juntas, passava meus finais de semana, todos, ao lado dela e da minha mãe. Muitos anos assim. Era como que uma ponte entre as duas. Brigavam demais e eu sempre defendia nossa mãe e ia lá no ouvido dela apontar os seus erros, que devia ser mais compreensiva e complacente. Afinal, pela idade dela, pouco viveria e tinha o direito de ser quem era, com seus defeitos e alegrias. Elas moravam juntas e minha irmã detestava os bingos, os bolos de laranja, a casa repleta de vizinhos que vinham para se divertir. Ela só queria paz, sossego, pipocas, filmes na TV. Direito de descanso por ter trabalhado durante quase quarenta anos como gerente de Departamento Pessoal, em defesa dos empregados de várias empresas diferentes por onde andou. Depois da aposentadoria, com dinheiro do Fundo de Garantia e reservas guardadas por toda uma vida de sonhos, minha irmã abrira uma pequena lanchonete, com pastéis e caldo de cana. Tudo parecia andar bem até o momento em que sua mão direita fora pega de surpresa pela máquina de moer cana. Perdeu poucos movimentos, mas o suficiente para deixá-la triste, até porquê os negócios já não iam bem desde que um grande restaurante fora aberto logo em frente e roubara dela todos os clientes que antes vinham atrás de um marmitex barato e rápido. Não demorou muito a abrir falência e ser obrigada a fazer as contas dos funcionários. Honesta e defensora dos Direitos Trabalhistas, pagou tudo o que devia por lei para cada um deles. No entanto, uma das moças entrou na Justiça, conseguiu provar por A mais B, através de confissões falsas de testemunhas desonestas, que não havia recebido o que merecia. Alegava horas extras noturnas, num horário em que a dona não permanecia. Ganhou a causa e atrás dela, outros empregados vieram e minha irmã perdeu tudo o que tinha, inclusive o salário de aposentada ficou comprometido para pagamento em parcelas mensais destes quesitos judiciários, que perduraram até o último instante.
PRESSÁGIO
Em meu sonho as duas brigaram e minha irmã saiu da sala batendo a porta com muita força. Extremamente zangada. Minha mãe reclamou para mim: “Vês como ela me trata”? – Ao que respondi:  “Tenha paciência, minha mãe, pois ela vai morrer antes de ti”! - Acordei, e desta vez não foi a curiosidade quem mais massageou minha mente de surpresas, mas a dor. Era tão real, mas como?  Minha mãe já passara por poucas e boas. Por duas vezes havia sido diagnosticada com trombose. Da última vez até UTI por cinco dias, com trombo embolia pulmonar. Estava com mais de oitenta anos. E minha irmã, afinal, tinha saúde de ferro. Eu nunca a vi doente. E pra mim, até então, depressão não era tão grave assim.
DESPEDIDA
Às vezes o auxílio vem de quem menos esperamos. Programara uma excursão com meus alunos para o Museu do Imigrante. Organizara tudo com o maior capricho. Meses antes e naquela sexta-feira iria sozinha, com uma turma de trinta e cinco alunos da quinta série. Fizera todos os contatos e na hora “H”, eis a surpresa. Um telefonema rápido: “Filha, vem depressa pra cá, sua irmã está morrendo”! Atônita, fiquei sem saber o que fazer, o ônibus e os alunos já estavam a postos. Como estar em dois lugares ao mesmo tempo? Foi então que minha amiga se ofereceu: “Eu vou no seu lugar”. Era professora de Português no primeiro período da escola e a outra, quem se ofereceu, trabalhava no noturno e ali apareceu até hoje não sei como, nem o porquê. Dirigi a todo vapor para a casa de minha irmã e a encontrei dentro da ambulância, já acordada. Só tive tempo de deixar o carro na garagem, subir e acompanhá-la para o hospital mais próximo. Fizeram vários exames e nada detectaram de errado com ela. Os médicos deram alta. A caminho do estacionamento, ela desmaia e por fração de segundos, eu a senti como que morta, como decerto aconteceu. Outra parada cardíaca. E desta vez, a correria pelo hospital foi a mil e ela novamente internada para uma nova bateria de exames. Passou a madrugada da sexta por lá e eu voltei pela manhã para vê-la. Monitorada, a respiração não estava bem. Pediu-me para ir ao banheiro e lá, novamente, em meus braços, eu a perdi. Voltou, mas não por muito tempo, pois na madrugada do sábado, cerrou os olhos e o sofrimento para sempre.
Tudo foi tão rápido que nunca tive tempo de me despedir. Li com um grito, o atestado de óbito e o resultado da Autópsia: Morrera de embolia pulmonar. Ficaram em mim as gargalhadas, as alegrias, as poucas viagens, nossas conversas, nossos desejos trocados. Meu sonho profético se concretizou. Quase nada me lembro daquele triste velório. A não ser o quanto a esposa do meu sobrinho passou mal e vomitou. Era o cheiro, diziam.
Dias depois recebi um telefonema: O ultrassom confirmou: Minha irmã seria vovó pela primeira vez! Gargalhei gargalos de alegria, porque tinha certeza de que ela já sabia.

Liz Rabello