terça-feira, 5 de maio de 2020


Tá tão difícil...
Palavras são pedregulhos na boca
Borrões de tintas no papel
Hipocrisias da minha alma
Estou seca
Liz Rabello


Estes dias me trouxe a lucidez do envelhecer neste país. Por lei, nós, idosos, somos descartáveis. Se o vírus me pegar, a morte é certa. Entre mim e o jovem o respirador é pra ele. Não há respiradores para todos. Talvez eu mesma ceda a vez pra ele. Afinal, eu já vivi. Mas dói pensar na humilhação de uma despedida assim sem família sem amigos sem abraços sem laços sozinha sozinha sozinha...

Liz Rabello


Minha adorável quarentena 43

O dia silencioso tinha de chegar. Durante toda a quarentena, fugi dos fantasmas da solidão e da desesperança por detrás de trincheiras de almofadas, travesseiros e telas de cristal líquido.
Escrevi diariamente, como quem passa água sanitária na dor. Durante todos esses dias, atirei palavras aqui, tentando expulsar os hectoplasmas do Covid-19 com poemas sufocados pedindo respiradores, com crônicas de garganta ressecada por puro desespero.
Mas ontem o dia do silêncio veio enfim, aterrado de pavor. Logo pela manhã, duas mortes de dois inventores do Brasil me pegaram pelo colarinho, mortes intimamente ligadas ao tempo de agora. Blanc e Migliaccio morreram de Brasil. E aquilo me congelou, despalavrado.
Aldir, um dia, disse, “por isso duramos, por isso morremos, eu quero morrer, durar por um motivo de gente, ainda que eu tenha de escarrar junto com o beijo”. Essa era a magnífica intensidade intencional sua, orgulhosamente suburbana, garimpada por ele nas ruas pela madrugada, sem estetização dramática da miséria.
Ela está pulsando agora, num céu de nuvens chupando estrelas no céu como um mata-borrão, que imagem, meu deus, para falar dos nossos desaparecidos políticos. Que atual.
Aldir é o gênio desenhador do nosso real, é nosso Maiakovski e nosso Émile Zola, cantando desde as querelas brasileiras de todos os tempos até o mais prosaico ban-daid no calcanhar. Em Aldir vê-se um Brasil desenfreado, morrendo e nascendo desesperadamente, em cada verso.
Aldir é um farol iluminando um mar lírico onde só ele navega, em sambas impensáveis, que narram, por exemplo, a visita de um recém-milionário ao psicanalista; as glórias das lutas inglórias de nossa gente; a sina verde e amarela de nossos artistas, heróis imortais; um amigo dizendo a outro, “que bom se eu morresse”; a esponja de pó de arroz no bolso como metáfora de um amor impossível; um velho mofado, espremido entre o torresmo e a moela; uma pesca de siri para homenagear um alérgico a frutos do mar; um corpo estendido no chão provocando tanta dor numa comunidade e como a vida os fez reagir àquilo, apenas seguindo em frente; a rotina de um casal, nos delírios de um catavento e de um girassol; as respostas de amor que só os mortais podem dar ao tempo, tanta filosofia, das graúdas. Só mesmo Aldir. Esse impreenchível compositor popular, até ontem brincando de “tudo”, com seus netos. Aliás, alguém lembrou de perguntar a ele como se brinca de tudo? Seus netos nos dirão.
Enquanto eu divagava nos fumos cheios de imagens potentes, os “pé na cara” que um dia Henfil recomendou ao menino tijucano recém-chegado ao Pasquim, me veio a notícia do suicídio de Flávio Migliaccio. Caramba, o meu amado Xerife da camicleta, o herói da minha infância, o palhaço brasileiro da estirpe mais elegante, a do povo. Chorei. Talvez estivesse precisando chorar um pouquinho.
A morte não quer mesmo me deixar em paz. Não quero olhar pra trás, mas a pandemia atira na paisagem recortada da minha janela, todo dia, uma montanha de mortos.
Flávio e Aldir se espelharam na carta que Flávio deixou e que foi motivo de muita polêmica na rede. No breve bilhete, como numa letra de Aldir, também havia dor, desespero inconsolável, amor, criança, ativismo na corda bamba de sombrinha.
Não esperem de mim uma posição sobre a validade da publicação. Não sei ser categórico sobre isso. Por um lado, acho que a carta heroiciza o ato e joga a gota que falta ao potinho de muita gente angustiada, atraída pelo fim, o que, de certo modo, promoveria a morte. Mas, por outro, acho também que um bilhete é um manifesto político, um grito que deve ser ouvido pelos concidadãos. Creio ser um direito dos velhos, desenhar dramaticamente, no estertor da vida, o seu fim, como quis manifestar esse ator de indiscutível talento. Migliaccio, como todo homem, tem direito a viver com a plateia o seu ato final, como um lúcido grito apontando para o horror em que nosso país vive.
Mas ontem não me vieram as palavras. Só pude voltar hoje a escrever porque descobri, cantando, “o que há nos lados dos meu coração”: que tanto Aldir como Flávio não apenas morreram de Brasil, eles viveram de Brasil também. Eles fizeram o Brasil viver, fazendo correr neles esse mesmo sangue que nos alimenta diariamente de Nação. E isso hoje me ressuscitou.
Marcilio de Godoy