quinta-feira, 6 de setembro de 2018



DIÁLOGO INTERTEXTUAL PERFEITO. IMAGENS EM PALAVRAS SE CONSAGRAM...

O que é um espelho? É o único material inventado que é natural. Quem olha um espelho, quem consegue vê-lo sem se ver, quem entende que a sua profundidade consiste em ele ser vazio... esse alguém percebeu o seu mistério de coisa.

Clarice Lispector

Foto do mural de Deolinda Nunes

ÀS VEZES O NOSSO ESPELHO ESTÁ NAS JANELAS DO PASSADO

Parei para comprar um pastel. Delícia das sextas feiras. Pedi bem queimadinho, com uma crosta firme nas pontas, muita carne moída e tempero a meu gosto. Pena não ter tempo de sentar-me num daqueles bancos da pracinha e saborear meu apetitoso momento de lazer.  Fui andando depressa, de volta para o colégio. Ainda tinha algumas horas a completar minha jornada.

Olhei à frente e o vi. Uma mancha de moleque negra, sacolejando o molejo afro pela calçada. Dois lindos e alegres olhos de jabuticabas, pedintes. Perguntei: “Quer um pedaço?” – Assentiu com a cabeça afirmativamente e pegou bem depressa o pastel quase que inteiro. Ávido, despejando no pouco de carne que caía, uma alegria infinita em gratidão.  Impossível não participar daquela cena. Meus olhos adentraram para os dele. Era um menino de pouco mais de cinco ou seis anos, franzino, pernas finas.  Acariciei os seus cabelos crespos com a nítida impressão de que já nos conhecíamos!

Impossível! Há mais de vinte anos que não tenho alunos tão pequenos, mas minha mente naufragou em um passado distante demais para encontrar uma saída.

Arrisquei um comentário: “Teus olhos me lembram alguém que muito amei e com quem eu aprendi”. Só então é que notei o pai, ao lado do menino. Olhos marejados, muito feliz ao exclamar: “Professora, você me ensinou a ler e escrever na primeira série no Rui Bloem”.

 Somos o que amamos e aprendemos aquilo que ensinamos.

Liz Rabello