DIÁLOGO INTERTEXTUAL PERFEITO. IMAGENS EM PALAVRAS SE
CONSAGRAM...
O que é um espelho? É o único material inventado que é
natural. Quem olha um espelho, quem consegue vê-lo sem se ver, quem entende que
a sua profundidade consiste em ele ser vazio... esse alguém percebeu o seu
mistério de coisa.
Clarice Lispector
Foto do mural de Deolinda Nunes
ÀS VEZES O NOSSO
ESPELHO ESTÁ NAS JANELAS DO PASSADO
Parei para comprar um pastel. Delícia das sextas feiras.
Pedi bem queimadinho, com uma crosta firme nas pontas, muita carne moída e
tempero a meu gosto. Pena não ter tempo de sentar-me num daqueles bancos da
pracinha e saborear meu apetitoso momento de lazer. Fui andando depressa, de volta para o
colégio. Ainda tinha algumas horas a completar minha jornada.
Olhei à frente e o vi. Uma mancha de moleque negra,
sacolejando o molejo afro pela calçada. Dois lindos e alegres olhos de
jabuticabas, pedintes. Perguntei: “Quer um pedaço?” – Assentiu com a cabeça
afirmativamente e pegou bem depressa o pastel quase que inteiro. Ávido,
despejando no pouco de carne que caía, uma alegria infinita em gratidão. Impossível não participar daquela cena. Meus
olhos adentraram para os dele. Era um menino de pouco mais de cinco ou seis
anos, franzino, pernas finas. Acariciei
os seus cabelos crespos com a nítida impressão de que já nos conhecíamos!
Impossível! Há mais de vinte anos que não tenho alunos tão
pequenos, mas minha mente naufragou em um passado distante demais para
encontrar uma saída.
Arrisquei um comentário: “Teus olhos me lembram alguém que
muito amei e com quem eu aprendi”. Só então é que notei o pai, ao lado do
menino. Olhos marejados, muito feliz ao exclamar: “Professora, você me ensinou
a ler e escrever na primeira série no Rui Bloem”.
Somos o que amamos e
aprendemos aquilo que ensinamos.
Liz Rabello