Tá tão difícil...
Palavras são pedregulhos
na boca
Borrões de tintas no papel
Hipocrisias da minha alma
Estou seca
Liz Rabello
Estes dias me trouxe a
lucidez do envelhecer neste país. Por lei, nós, idosos, somos descartáveis. Se
o vírus me pegar, a morte é certa. Entre mim e o jovem o respirador é pra ele.
Não há respiradores para todos. Talvez eu mesma ceda a vez pra ele. Afinal, eu
já vivi. Mas dói pensar na humilhação de uma despedida assim sem família sem
amigos sem abraços sem laços sozinha sozinha sozinha...
Liz Rabello
Minha adorável quarentena
43
O dia silencioso tinha de
chegar. Durante toda a quarentena, fugi dos fantasmas da solidão e da
desesperança por detrás de trincheiras de almofadas, travesseiros e telas de
cristal líquido.
Escrevi diariamente, como
quem passa água sanitária na dor. Durante todos esses dias, atirei palavras
aqui, tentando expulsar os hectoplasmas do Covid-19 com poemas sufocados
pedindo respiradores, com crônicas de garganta ressecada por puro desespero.
Mas ontem o dia do
silêncio veio enfim, aterrado de pavor. Logo pela manhã, duas mortes de dois
inventores do Brasil me pegaram pelo colarinho, mortes intimamente ligadas ao
tempo de agora. Blanc e Migliaccio morreram de Brasil. E aquilo me congelou,
despalavrado.
Aldir, um dia, disse, “por
isso duramos, por isso morremos, eu quero morrer, durar por um motivo de gente,
ainda que eu tenha de escarrar junto com o beijo”. Essa era a magnífica
intensidade intencional sua, orgulhosamente suburbana, garimpada por ele nas
ruas pela madrugada, sem estetização dramática da miséria.
Ela está pulsando agora,
num céu de nuvens chupando estrelas no céu como um mata-borrão, que imagem, meu
deus, para falar dos nossos desaparecidos políticos. Que atual.
Aldir é o gênio desenhador
do nosso real, é nosso Maiakovski e nosso Émile Zola, cantando desde as
querelas brasileiras de todos os tempos até o mais prosaico ban-daid no
calcanhar. Em Aldir vê-se um Brasil desenfreado, morrendo e nascendo
desesperadamente, em cada verso.
Aldir é um farol
iluminando um mar lírico onde só ele navega, em sambas impensáveis, que narram,
por exemplo, a visita de um recém-milionário ao psicanalista; as glórias das
lutas inglórias de nossa gente; a sina verde e amarela de nossos artistas,
heróis imortais; um amigo dizendo a outro, “que bom se eu morresse”; a esponja
de pó de arroz no bolso como metáfora de um amor impossível; um velho mofado,
espremido entre o torresmo e a moela; uma pesca de siri para homenagear um
alérgico a frutos do mar; um corpo estendido no chão provocando tanta dor numa
comunidade e como a vida os fez reagir àquilo, apenas seguindo em frente; a
rotina de um casal, nos delírios de um catavento e de um girassol; as respostas
de amor que só os mortais podem dar ao tempo, tanta filosofia, das graúdas. Só
mesmo Aldir. Esse impreenchível compositor popular, até ontem brincando de
“tudo”, com seus netos. Aliás, alguém lembrou de perguntar a ele como se brinca
de tudo? Seus netos nos dirão.
Enquanto eu divagava nos
fumos cheios de imagens potentes, os “pé na cara” que um dia Henfil recomendou
ao menino tijucano recém-chegado ao Pasquim, me veio a notícia do suicídio de
Flávio Migliaccio. Caramba, o meu amado Xerife da camicleta, o herói da minha
infância, o palhaço brasileiro da estirpe mais elegante, a do povo. Chorei.
Talvez estivesse precisando chorar um pouquinho.
A morte não quer mesmo me
deixar em paz. Não quero olhar pra trás, mas a pandemia atira na paisagem
recortada da minha janela, todo dia, uma montanha de mortos.
Flávio e Aldir se
espelharam na carta que Flávio deixou e que foi motivo de muita polêmica na
rede. No breve bilhete, como numa letra de Aldir, também havia dor, desespero
inconsolável, amor, criança, ativismo na corda bamba de sombrinha.
Não esperem de mim uma
posição sobre a validade da publicação. Não sei ser categórico sobre isso. Por
um lado, acho que a carta heroiciza o ato e joga a gota que falta ao potinho de
muita gente angustiada, atraída pelo fim, o que, de certo modo, promoveria a morte.
Mas, por outro, acho também que um bilhete é um manifesto político, um grito
que deve ser ouvido pelos concidadãos. Creio ser um direito dos velhos,
desenhar dramaticamente, no estertor da vida, o seu fim, como quis manifestar
esse ator de indiscutível talento. Migliaccio, como todo homem, tem direito a
viver com a plateia o seu ato final, como um lúcido grito apontando para o
horror em que nosso país vive.
Mas ontem não me vieram as
palavras. Só pude voltar hoje a escrever porque descobri, cantando, “o que há
nos lados dos meu coração”: que tanto Aldir como Flávio não apenas morreram de
Brasil, eles viveram de Brasil também. Eles fizeram o Brasil viver, fazendo
correr neles esse mesmo sangue que nos alimenta diariamente de Nação. E isso
hoje me ressuscitou.
Marcilio de Godoy