sexta-feira, 31 de julho de 2015




ESPERAR NÃO É FÁCIL


Estávamos na Sala de espera do Laboratório Lavoisier. Meu amor precisando fazer um exame de endoscopia. Minutos são horas. Tempo que não escorre. Para. A cena me levou para muitos anos atrás. Eu e o Rodrigo num ponto de ônibus. Esperávamos por uma condução que nos levasse até a Casa Verde. Francisco Matarazzo é passagem para vários bairros. Ônibus chegavam e partiam com a maior facilidade. Menos o meu, que não chegava nunca. A certa altura meu filho pequeno enlouqueceu de raiva. Esperneou pela calçada, me xingando em som alto e de bom tom:  “Você é muito chata mamãe, fica escolhendo, nós vamos entrar no primeiro que aparecer” – Enquanto tentava explicar que não era bem assim, que não se tratava de escolha, mas de falta de opção, o tal ônibus aparece, novinho em folha. Claro que entramos bem depressa, após dar o sinal de parada e o veículo abrir suas portas para nos receber. – “Viu, você só estava esperando chegar um bem novinho!” – Gritou o menino todo feliz!  Três quarteirões depois o acidente aconteceu. Saímos do ônibus batido e amassado aos berros do meu filho e pegamos um táxi.  – “Puxa, mamãe, por que você não fez isto antes?”

Liz Rabello

quarta-feira, 29 de julho de 2015



UM ASSALTO INUSITADO



Dizem que senhorinhas são mais sinalizadas para assaltos do que jovens mulheres ou homens. Por isto já estou na casa de mais de dez!  À mão armada ou não, certeza é que bandidos gostam de me explorar. E isto não acontece somente agora, pois logo que me casei, quando lavei pela primeira vez minhas roupas do enxoval, novinhas em folha e as pendurei no varal, saí para as compras. Ao voltar cadê as roupas? Nunca mais as vi! Minto, vi, sim, dentro do ônibus, dias depois uma garota vestindo meu terninho. Era impossível coincidências, pois eu havia escolhido o tecido de gorgurão vermelho, os botões e mandado para uma costureira confeccioná-lo. Designer escolhido e criado por mim. Não havia cópias da China, baratinhas como hoje em dia. Nada fiz, embora a vida inteira tivesse ímpetos de rasgar as vestes daquela menina.

No último assalto jurei: “Não vou mais permitir que me façam de boba!” Assim quando meu filho perguntou-me se sabia onde estava o relógio dele e cogitou de que havia sido roubado, fiquei com a última versão na cabeça. Não costumo ir ao centro de carro. Difícil estacionar. Fui de ônibus. E qual não foi minha surpresa quando observei um rapaz muito bem vestido, com um relógio igualzinho ao do meu filho. Marca, cor, senti até o mesmo perfume. Uma raiva muito grande e a lembrança do passado inacabado a perseguir-me. Em frente ao Metrô Marechal, o rapaz desceu. Fui atrás. Minha arma: meu guarda-chuva! Dei-lhe muitas guarda-chuvadas em suas costas, chamando-o de ladrão e gritando que queria meu relógio de volta. Em pânico, o rapaz obedeceu. Arrancou o relógio do pulso e em minha mão livre o depositou, safando-se do guarda-chuva o mais rápido que conseguiu fugir.

Muito feliz cheguei em casa com meu prêmio pendurado na lapela. Meu terninho vermelho finalmente estava vingado! Mas quando olhei em cima da cômoda ali estava brilhando, translúcido, angelical relíquia perdida: um relógio exatamente igual ao que eu havia “assaltado” horas antes!

(Liz Rabello, In LUA NO CHÃO, Um Assalto Inusitado, página 26, Editora Essencial, 2015)

domingo, 26 de julho de 2015




Antigamente molhava as plantas e lavava o quintal todos os dias. Tinha um visitante João de Barro, que vinha banhar-se logo após as poças d'água se formarem... Nunca mais o vi, após parar com estes gastos excepcionais e fazer a minha parte na economia do gasto do puro ouro azul, tão em falta aqui em São Paulo. Hoje, vencida pelo barro que se formou com a pouca chuva de ontem, lavei o caminho até os fundos e meu visitante veio me agradecer. Trouxe os amigos... Foi uma festa! Sinfonia de cordas musicais dos meus amigos leais!

Liz Rabello


quinta-feira, 16 de julho de 2015

O RESGATE


Sou a filhinha do meio de um casal de vira-latas. A terceira de uma lista de cinco. De mamãe herdei apenas as orelhas em pé e muito aguçadas, atentas a qualquer barulhinho que a mim se apresentasse.


De papai me veio tudo, o olhar carinhoso, bondoso, confiante, o porte capa preta, o corpo alongado. 


Meus primeiros dias de vida foram mágicos, uma família linda. Éramos cinco irmãozinhos a nos empurrar mutuamente para mamar. Mamãe deitava-se de lado e nós devorávamos o nosso leite com fome de quem nunca se alimentou.

Um belo dia, um homem chegou, pulávamos em seus pés enquanto nos lambuzávamos de nossos próprios excrementos.  Atrás dele, outros dois. Fomos para o colo deles sem o menor medo, já que até então, a vida era um mar de rosas.  Vi meus três irmãos serem levados numa caixa de madeira e tristes partiram para nunca mais nos encontrarmos. Fiz carinha de “santo” porque também desejei ir com eles, sem saber ao certo para onde iriam.


Sozinhas eu e Tequila brincávamos o dia inteiro, só parando pra mamar. Eram rasgos de revistas, bagunça com fitas e novelos de lãs da vovó, que com muita paciência vinha nos desenrolar. Verdade que pegava o chinelo, mas como nunca bateu, não sabia o que era dor.


Fazia carinha de sonsa, sapeca, hipócrita peralta e ela me pegava no colo. E ela me enchia de afagos.


Nesta altura já sabíamos o que era luxo, porque já entrávamos na sala e fazíamos das nossas no tapete da vovó.  Pegávamos chinelos, rolávamos pertences, rompíamos almofadas, fazíamos  a maior bagunça e tudo ficava em desordem, só eu e Tequila felizes.

Uma tarde ouvimos barulhos. Gritos fortes, choro ardido.  Vovó caiu da escada e chorava de dor.  Desapareceu daquela casa. Acho que nunca mais andou.  Passos malvados numa rouca voz denunciavam:  Tequila e eu éramos culpados daquela situação.

Arrancados do aconchego do lar, fomos levados a um lugar sinistro, onde só tinha cães. É bem verdade que nos alimentavam. Banhos e cuidados medicinais é o que não faltavam. Vacinas e pouco carinho, porque ninguém tinha tempo pra nós.  Um belo dia chegou uma moça e se apaixonou por Tequila e a pegou no colo e a levou embora. Só ouvi a palavra Rio. E depois “adoção”.


Muitos outros foram chegando e os mais espertos foram indo embora... 


E só eu é que fui ficando...


Um belo dia, ao ver uma fresta de porta entreaberta, passei desapercebida por ela. Fugi. E daí começou minha loucura.  Sem lugar para dormir, fome e sede a me sucumbir.  Nem me lembro de como sobrevivi. Só sei que aprendi a fugir da vassoura, porque muitas pauladas levei.  Só sei que aprendi a fugir dos cachorros, pois queriam me morder. Só sei que aprendi a mexer numa lata de lixo e vira lata realmente me tornei. Só sei que aprendi a fugir do homem de boné, pois um deles muito me bateu. Só sei que aprendi a detestar motoqueiros desde que um deles muitos pontapés me deu. Só sei que aprendi a correr com os carros, porque na Marginal Tietê eu cheguei. Só sei que aprendi  a ficar sem água, porque o cheiro de podre não me fazia bem. Dias e noites assim. Minhas forças já me faltavam. Exaurida parei  num posto de gasolina, sem esperanças, uma tristeza infinita no olhar. Ele me viu... Ou fui eu que o escolhi para amar? Era um anjo.  Olhou-me nos olhos e imediatamente percebi o rosto da bondade e asas de bem me quer.  Sua amiga denunciou: “Esta cadelinha está com sede”. E muita água potável me saciou. Chamou-me de Vareta e o nome ficou, tão magrinha e desnutrida, que mais parecia uma vara a se quebrar. Quando abriu a porta do carro e me convidou para entrar, percebi que minha infernal  peregrinação estava por um fio. Portas do paraíso se abriram e começou então um amor sem fim!


Hoje sou uma princesa e musa de um livro que escreveram pra mim, faço poses e lambidas de agradecimentos sem fim.  Estou nas redes sociais e muito sucesso eu já fiz. Até encontrei minha irmãzinha, que vive feliz lá no Rio, porque foi amada, tanto como eu adotada.


Liz Rabello

sábado, 4 de julho de 2015

VAMOS CONHECER FRANS KRAJCBERG?


"O artista sem fronteira, para nosso orgulho, vive aqui", diz a placa de boas-vindas na entrada de Nova Viçosa, no extremo sul da Bahia. A pequena cidade foi eleita pelas baleias-jubarte como o destino anual de inverno e também por Frans Krajcberg como sua casa definitiva. Mas, quando se convive um pouco mais de perto com esse escultor e poeta da natureza, fica estranho imaginar que alguém tão livre tenha um CEP. "Sou um homem do mundo. Nasci e tenho o direito de viver nele", afirma Krajcberg, que cresceu na Polônia, perdeu a família na guerra e chegou aqui aos 27 anos, sozinho e com medo das pessoas. "Na Hungria, vi uma montanha de lixo num campo de concentração. Cheguei mais perto e eram corpos empilhados." Tamanho horror explica sua felicidade quando conheceu a natureza brasileira. "Ela me salvou. Sorria para mim e nunca perguntava de onde eu vinha ou que religião tinha. Foi quando descobri a vida." Hoje, Krajcberg mora num resquício de mata Atlântica com o mar no quintal e faz da sua arte um grito de revolta.



"Krajcberg ganhou projeção internacional com suas esculturas de madeira calcinadas nos anos 1970. Seu trabalho tem uma dimensão ética que vai além da arte: está ligado ao mundo sem ser panfletário e literal"

(Agnaldo Farias, crítico de arte)


Krajcberg vive a 7 m do chão, numa casa construída na árvore. Mas houve um tempo em que se escondeu nas montanhas. "Eu o conheci no interior de Minas, nos anos 1960. Ele morava em uma caverna no pico de Cata Branca, região de mineração em Itabirito, atéhoje apelidada de Barbudo das Pedras", conta Zé do Mato, que se tornou ajudante do tal Barbudo das Pedras. O artista vivia sem conforto, a barba por fazer, tomava banho no rio e trabalhava sem parar. Até hoje companheiro da solidão, o escultor inventou um jeito próprio de morar. "O melhor dia para mim é domingo. Me sinto bem sozinho", diz. Em sua casa monástica, apenas algumas cadeiras, uma cama estreita, poucas roupas e cinco malas empilhadas pois é, atéum homem livre precisa delas. O único luxo éa coleção de conchas, pedras, galhos secos e sementes. Boa parte dela recolhida no Sítio Natura, onde chegou em 1972, a convite do amigo e arquiteto Zanine Caldas, que o ajudou a conceber a casa da árvore. "Ele sonhava em transformar Nova Viçosa numa capital cultural", lembra. A utopia de Zanine chegou a reunir nomes como Chico Buarque, Oscar Niemeyer e Dorival Caymmi. Só Krajcberg ficou.
"Ele éum artista único e radical, que suscita reflexões e diálogos. Ano passado, estivemos juntos em sua exposição no Parque Bagatelle, em Paris, e fiquei impressionado com a reação visceral das pessoas"



A despeito da recomendação médica, Krajcberg quase nunca lembra de beber água. Quem o vê andando firme, gesticulando e dando ordens a seus 12 ajudantes, não imagina que esse senhor de 85 anos tenha passado recentemente pelo Hospital Albert Einstein, em São Paulo. Recuperado de uma infecção rara, ele parece ter mais pressa do que nunca - a mesma dos que defendem uma causa urgente. "A situação do planeta égrave. A natureza évingativa e nós a machucamos demais. Não podemos continuar passivos", brada. Ao transformar troncos e galhos calcinados em esculturas, Krajcberg protesta diante do que chama de barbárie do homem contra o homem e do homem contra a natureza. "Quero que minhas obras sejam um reflexo das queimadas. Por isso, uso as mesmas cores: vermelho e preto, fogo e morte." Entre os amigos queridos que são, na verdade, sua família está o cineasta Walter Salles. "Costumo brincar que Krajcberg é meu irmão mais novo e mais radical", diz. Os dois se conheceram em 1987, quando Salles filmou o documentário Krajcberg, o Poeta dos Vestígios. "Fazemos aniversário no mesmo dia, 12 de abril, e costumamos comemorar juntos." "Sou um homem revoltado." A frase recorrente de Krajcberg lhe rendeu a fama de brigão. Já denunciou as queimadas no Paraná, a exploração dos minérios em Minas Gerais e o desmatamento na Amazônia. Também defendeu as tartarugas de Nova Viçosa e se postou na frente de um trator para evitar a construção de uma avenida na cidade. Apesar dessas e de outras histórias de indignação, o escultor também pode ser muito engraçado. Inventa apelidos para as pessoas, diz bom-dia para árvores e dança quando ouve o toque alegre do seu celular. "Adoro seu humor. Acho extraordinário que, depois de tudo o que viveu, ainda mantenha um sorriso tão sincero", observa Walter Salles. Contradições como essas fazem do escultor um artista contundente. "Ele está inserido na história da arte há muito tempo. Começou como um artista abstrato nos anos 1950 e migrou para a escultura", resume o crítico Agnaldo Farias. Hoje, o que ele adora mesmo éfotografar. Acorda cedo e sai registrando flores. Nesses momentos, fala da importância de aproveitar o instante e saber olhar para as coisas. "Um dia nunca é igual ao outro." Não mesmo no mundo de Krajcberg.

                                                            (Walter Salles, cineasta)





"Tinha 17 anos quando conheci o Frans e comecei a trabalhar como seu ajudante. Ele morava numa caverna, pois queria fugir dos homens. Parecia um animal machucado. Ali, ele fez as primeiras gravuras na pedra e esculturas"


(Zé do Mato, montador de exposições)