segunda-feira, 18 de agosto de 2014




UM ASSALTO INUSITADO

Dizem que senhorinhas são mais sinalizadas para assaltos do que jovens mulheres ou homens. Por isto já estou na casa de mais de dez!  À mão armada ou não, certeza é que bandidos gostam de me explorar. E isto não acontece somente agora, pois logo que me casei, quando lavei pela primeira vez minhas roupas do enxoval, novinhas em folha e as pendurei no varal, saí para as compras. Ao voltar cadê as roupas? Nunca mais as vi! Minto, vi, sim, dentro do ônibus, dias depois uma garota vestindo meu terninho. Era impossível coincidências, pois eu havia escolhido o tecido de gorgurão vermelho, os botões e mandado para uma costureira confeccioná-lo. Designer escolhido e criado por mim. Não havia cópias da China, baratinhas como hoje em dia. Nada fiz, embora a vida inteira tivesse ímpetos de rasgar as vestes daquela menina.

No último assalto jurei: “Não vou mais permitir que me façam de boba!” Assim quando meu filho perguntou-me se sabia onde estava o relógio dele e cogitou de que havia sido roubado, fiquei com a última versão na cabeça. Não costumo ir ao centro de carro. Difícil estacionar. Fui de ônibus. E qual não foi minha surpresa quando observei um rapaz muito bem vestido, com um relógio igualzinho ao do meu filho. Marca, cor, senti até o mesmo perfume. Uma raiva muito grande e a lembrança do passado inacabado a perseguir-me. Em frente ao Metrô Marechal, o rapaz desceu. Fui atrás. Minha arma: meu guarda-chuva! Dei-lhe muitas guarda-chuvadas em suas costas, chamando-o de ladrão e gritando que queria meu relógio de volta. Em pânico, o rapaz obedeceu. Arrancou o relógio do pulso e em minha mão livre o depositou, safando-se do guarda-chuva o mais rápido que conseguiu fugir.

Muito feliz cheguei em casa com meu prêmio pendurado na lapela. Meu terninho vermelho finalmente estava vingado! Mas quando olhei em cima da cômoda ali estava brilhando, translúcido, angelical relíquia perdida: um relógio exatamente igual ao que eu havia “roubado” horas antes!

Liz Rabello (In "LUA NO CHÃO", Editora Essencial, 2015)

domingo, 17 de agosto de 2014


LEONID AFREMOV


Amo pinceladas de Leonid Afremov... Espátulas em lugar de pincéis. Movimento e cores. Brilho e luz, suavidade, leveza nas cores intensas.

Liz Rabello


Graduou-se em 1978 na Escola de arte de Vitebsk, fundada por Marc Chagall em 1921. Afremov é um dos mais notáveis membros da escola, assim como Kazimir Malevich e Wassily Kandinsky. Viveu trinta e cinco anos na União Soviética, onde trabalhava pintando pôsteres de propaganda para o governo comunista. Descontente por ter o governo lhe ditando o que e como pintar, mudou-se para Israel em 1990.


Em Israel, conseguiu, em duas semanas, um emprego em uma agência de publicidade, pintando outdoors. Pouco antes de uma exposição, invadiram, roubaram e vandalizaram seu estúdio. Sua obra foi mal recebida: as pinturas de homens e mulheres nus chocaram a sociedade, assim como a representação de músicos de jazz negros foi mal vista por quem julgava que o artista deveria representar israelenses. Ademais, Leonid sentiu-se discriminado por não ser um israelense nato de modo que, em 2001, migrou para os Estados Unidos da América.

Nos Estados Unidos, viveu primeiramente em Nova Iorque, onde alcançou grande sucesso. Seus quadros são expostos lado a lado com artistas como Rembrandt. Suas obras são expostas em mais de sessenta galerias da Nova Zelândia, Austrália, África, Israel e EUA. Após viver dois anos em Nova Iorque, mudou-se para Boca Raton, Flórida, onde vive atualmente com sua família, pois julgava que o clima frio estava prejudicando seu trabalho, tornando-o mais sombrio e menos vívido.”
(http://pt.wikipedia.org/wiki/Leonid_Afremov)



quinta-feira, 14 de agosto de 2014





FOLCLORE

Meu netinho de mansinho
Veio dizer que é Agosto
Tempo de folclore a seu gosto
Imitando o Saci
Rosto pintado de carvão
Perninha suspensa em emoção
Atrás do sofá se escondeu
Assustou uma vovó
Que se fingia de improviso
Bateu a porta por querer
Até a maçaneta ceder
Depois veio como quem
Quer agradar pra valer!
“Vovó, quem decepou a perna do Saci?
Mula sem cabeça? Lobisomem?
Ou foi o bicho homem
Com as bombas dos judeus?
Ou foi o Iraque de araque
numa guerra por aqui?”
Como meus olhos marejaram
Me abraçou e comigo chorou
Que homem também pode,

Isto é o que me ensina o amor!

Liz Rabello

terça-feira, 12 de agosto de 2014



OH... MY CAPTAIN!



ROBIN, O HERÓI DO SORRISO

“Mais de 350 milhões de pessoas têm depressão, diz OMS - Estudo realizado pela Organização Mundial da Saúde mostra que aproximadamente 5% da população sofreu com a depressão no último ano”
“Mapa da depressão: Brasil é o país com mais casos no mundo”

 Por que a depressão passou a ser uma das doenças mais temíveis do planeta? O que pode acarretar à saúde da pessoa que sofre disto? São inúmeras as faces da depressão no mundo. Talvez quem esteja lendo agora estes mal escritos, seja um grande depressivo e nem saiba...

Ontem tivemos mais uma notícia triste que abalou o mundo. Um homem das artes cênicas morreu deprimido, triste, sozinho... O ator da arte do sorriso, Robin Willians. Sua carreira foi gloriosa por muitos anos, desde que começou no teatro. Iniciou como um comediante de stand up engraçadíssimo. Imitador de fazer qualquer homem de mau humor rolar no chão de rir. Robin e o palco eram a alegria, a vida, a fusão de um sucesso estrondoso. Veio fama pela TV com personagens lendários, até explodir no cinema. Daí a carreira alçou voos mais altos. Filmes de grandes bilheterias, estúdios felizes com lucros, entrevistas, amigos, histórias, prêmios e aquele homem bonachão, de sorriso simples e olhos ingênuos, poucos sabiam, sofria muito. Conquistou diretores, produtores, atrizes, muito dinheiro... E como um bom homem ajudou muito as instituições de caridade. Muitas... Seu encontro com as drogas e o alcoolismo deram trabalho e perdas nos relacionamentos pessoais. Até ser encontrado morto, Robin foi convidado para muitas apresentações, até mesmo aos soldados americanos no Iraque e no Afeganistão. Mas acho que esse capítulo se esgotou... O que pode levar a pessoa a ser depressiva, por que um homem que alegrou a tantos pelo mundo morreu triste e desconsolado? Nem sempre é possível existir clareza sobre quais acontecimentos da vida levam uma pessoa a ficar deprimida. Culpar drogas, momentos traumáticos são às vezes irrelevantes.

A depressão é causa ainda hoje de muito preconceito, inclusive dos que estão doentes. Motivo de chacota, pessoas de quase ou nenhuma informação não acreditam que ela pode inclusive paralisar uma pessoa, ou motivar agressividade.

Do meu ponto de vista a depressão é fruto de uma sociedade competitiva, doentia, consumista e egocêntrica. Normalmente para pessoas públicas é muito mais complicado. Cada ato falho na vida é muito mais cobrado. Enquanto vivermos de forma que existam vencedores e perdedores, onde a qualquer custo devemos atingir o status de “bem sucedidos”, muitos depressivos virão.

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

IMAGENS INSANAS


FOGO EM IBIÚNA PRECISA DO AUXÍLIO DO CORPO DE BOMBEIROS PARA NÃO CHEGAR EM PROPRIEDADES RURAIS E EM FIOS ELÉTRICOS, CUJOS POSTES AINDA SÃO DE MADEIRA.



 UMA GRANDE EXTENSÃO DA PROPRIEDADE JÁ ESTAVA DEVASTADA PELO FOGO. O VERDE QUE ALI BROTAVA AGORA NÃO PASSA DE MATO QUEIMADO.


AGOSTO INSANO

Desde criança estas cenas invadem minh'alma de indignação. Meu pai, por origens de trabalho, adquiriu uma doença crônica e irreversível: Fibrose Pulmonar. Pó de madeira, em seus pulmões fechavam os brônquios e ele não conseguia respirar sem o auxílio de oxigênio. Tubos iam e voltavam dentro de minha casa. Aflição de criança!

Meus vizinhos cortavam o mato do quintal. Colocavam fogo e meu pai morria aos poucos. Gritava, estraçalhava minha indignação com choro fértil. Lá se vai meio século da partida do meu grande amor e eu, hoje, choro por todos os animais que morrem a cada queimada, pelo solo perdido, pelos nutrientes queimados, pelo planeta e sua camada de ozônio cada vez mais em abismo. Pela água que não brota mais do céu. Seca que nos faz ficar com a pele encarquilhada e com a respiração difícil! Meu coração queima a cada Agosto insano!

Liz Rabello


QUEIMADAS

Uma tarde em que a saudade apertou, fui ao quarto dela. Encontrei um trabalho de pintura e colagens de fotografias. Era seu hobby, eternizar a vida ou a mim. Álbuns meus repletos de imagens dentro de caixas, cuidadosamente guardadas. Sabia perfeitamente o que havia lá dentro: Fotos minhas desde antes de nascer. Registros de meu crescimento, primeiros passos, primeiras quedas, choros e muitos sorrisos. Eu sempre fui alegre e não tinha como não o ser! A família toda me envolvendo em carinhos e afetos, cuidados e exigências! Todas, bem o conhecia: limites para me fazer ver que a vida nos é dada por empréstimo, que é preciso cuidar!

Parei diante daquela pintura. As fotos coladas sobre a chapa de acrílico, datavam de Agosto. Troncos de árvores queimadas. Cinzas. Restos do que poderia ser belo. Imediatamente eu me lembrei do quanto vovó dizia que sofria ao ver em suas viagens, as queimadas, que criminosamente os homens cometiam. Visualizei sua alma naquela foto, desenho de um contorno. Não por acaso, a pintura se chamava DOR. Atrás do quadro, um pequeno bilhete. Abri rapidamente como se encontrasse um copo de água no deserto:

Feche olhos pras queimadas
A gosto de quem não vê
Os Agostos sem chover!

(In “INTERVALOS”, “CÓDIGO AGV”, Liz Rabello, Editora Beco dos Poetas, 2013)

sábado, 9 de agosto de 2014

HOMENAGEM PÓSTUMA
FELIZ DIA DOS PAIS ZEZINHO!

Perdi meu pai com pouca idade (mais ou menos dez anos)... Presentes? um bebê num carrinho de passeio, DNA? Tudo, sou ele, me vejo parecida com ele, de minha mãe, só os trejeitos italianos, ou a cor verde do olhar. Fraldas, mensalidades? Nada disto, que naquele tempo era tudo muito diferente... No entanto, sabe do que me lembro? De quando me colocava em seu colo e me fazia ler a Caminho Suave, de quando pegava em minha mão e me ensinava a escrever um bilhete de amor a minha mãe, de quando me encantava com histórias de contos de fadas, João e Maria, de quando me elogiava, eu me via pelos seus olhos, sem espelhos e conseguia acreditar que um dia eu seria ALGUÉM! Ele me transmitiu valores, ética, e, principalmente, a certeza de um amor sem fim, porque sei que o amo até a eternidade. E lá se vão cinquenta anos ou mais de ausência/presença infinita em minha vida. Amar é isto, eu creio!


Pai, eras minha proteção,
Puro amor
Idealização do que sou,
Do que fui, do que serei!
Tua partida deixou um vácuo
Um abismo jamais preenchido!
Mas fui tecendo dia a dia
O que tu querias, Zezinho!
A cada conquista, uma resposta
Um agradecimento, uma vitória!
Sim, sou tua filha, Zezinho!

Liz Rabello

RECORTES DA MINHA INFÂNCIA

Tenho janelas abertas do passado
Travas serenas prontas a me agasalhar
Saudades lindas e vibrantes
Momentos vividos na infância
Sonhos a me iludir no presente

A maioria das casas de nossa rua não possuíam ainda luz elétrica. Nós, sim. Mas o abastecimento era tão precário, que vivíamos apagões constantes. Éramos, então, obrigados a nos iluminar à luz de vela. Momentos lindos. Meu pai brincava de magia. Cortava o fogo com seus dedos ágeis e jamais os queimava. Depois pegava a vela e a levava ao caminho desconhecido do mundo dos contos de fadas: João e Maria... Perdidos na noite de lua escondida. O caminho iluminado pelo sol (vela acesa) era marcado na mesa da cozinha por casquinhas de pão. Eu fingia ser o passarinho que as pegava para levar ao ninho e dar aos filhotes o abençoado jantar. Os dois irmãos jamais conseguiram voltar, por conta de que eu passarinha as comia... Chegávamos a desligar a luz elétrica só para brincar de magia à luz de vela. Era tudo tão lindo e eu fico de novo feliz, só de lembrar. Quando a luz voltava não havia na mesa nenhum vestígio das casquinhas de pão abençoadas. Até hoje, amo este lance do pão francês. Sei que é vestígio de minha infância povoada de palavras, de sons, de sonhos, que meu pai carinhosamente me iludia.

Liz Rabello

quinta-feira, 7 de agosto de 2014


A alma de uma criança consegue olhar para o céu e enxergar um balão colorido e mágico, repleto de esperanças, desnuda as bombas que do mesmo céu desceram e deceparam os sonhos de seus pais...
Liz Rabello


ALMA DE CRIANÇA

Olhos para o céu
Balão mágico nas alturas
Vai e volta com o bater das mãos
Tropeça nos escombros
Perna de pau
Bomba a decepou
Pele crua!

Olhos de oliva esperança
Alegria no balão de ar
Desnuda a miséria da guerra
Treina a alma para acreditar
Que só este balão amigo
Há de jorrar dos céus
Que nada mais há de estilhaçar
Velhos sonhos de seus pais!

Liz Rabello


domingo, 20 de julho de 2014

VOOS DE LIBERTAÇÃO


Lágrimas salgadas sobre o papel são tintas

 que secam sofrimento.


CENA  UM
ALÉM DOS OLHOS

Teus lábios não se abriam
Senão para me beijar!
Nunca foste de sorrir!
Eras sério demais...
Mas eu lia teus olhos
E tinhas a capacidade
Mágica de sorrir por eles!

 Não por acaso,
Aquele brilho
que eu em ti amava
E te sabia meu!
E te sabia alegre!
Nos olhos que só
pra mim Sorria!

Caso a tristeza
Tomasse conta
Deste brilho
Eu o sabia ler,
Como soube na tarde
Em que fostes embora
Da minha história!

Na minha memória
Nem seus lábios se movem
Num beijo tardio
Nem seus olhos piscam
Num sorriso infantil!
Apenas adormeces no sono
Eterno!

Adoro dormir. Quando bebê, dizem, era difícil encontrar-me acordada. Passei a maior parte da minha infância convidando meus irmãos para brincarem comigo “de dormir”. Certa vez, fui encontrada dentro do guarda-roupa, após ter deixado a família e todos os vizinhos desesperados com o meu sumiço. Só aprendi a dormir menos quando meus filhos nasceram. Foi então que meu sono pesado tornou-se leve e passei a acordar várias vezes durante a noite e a dormir intensamente logo após.

Estranho o que me aconteceu certa vez em que acordei sobressaltada com o telefone a tocar por volta da meia-noite. Não era ninguém que se manifestasse. Atendi e a voz do outro lado silenciou. De meia em meia hora, por quatro vezes seguidas, fui surpreendida por aquele toque silencioso e maligno. Fora de hábito, perdi o sono meio que preocupada, meio que agoniada, quando ouvi um baque surdo de um corpo pulando muro abaixo perto do meu quarto. Corri até a sala e liguei para a polícia, que veio muito rápido, cercou minha casa e vasculhou em cada canto o quintal inteiro sem nada encontrar de errado.  Morava sozinha com meus dois filhos pequenos desde a morte do meu marido e, naquela noite estávamos os três na cama de casal. Abraçada a eles, tentei adormecer de novo. Como não conseguisse, orei a Deus, o meu bom Deus, que me amparasse.

Não sei se dormi, nem mesmo sei se sonhei ou foi real. Certo é que me vi abrindo bem os olhos e vendo em volta de uma névoa uma mão a mim estendida. Reconheci de imediato, porque além dos olhos dele, o que mais o admirava eram as mãos. Perguntei de mansinho, voz baixa, tranquila: “É você, amor?” Ele de costas, voltou-se e vi, nitidamente, apenas o rosto do meu amado que em outras esferas já morava. Ouvi: “Precisava vir, quero saber como você e as crianças estão”. Fiz um sinal com a cabeça para mostrar meu filho menor que dormia do meu lado, bem pertinho. Olhei também para o meu anjinho, mas quando levantei os olhos, tudo sumiu de minha frente e me vi, consciente, sentada em minha cama, chorando e agradecendo a Deus por me ajudar a viver na solidão.


DO FUNDO DOS OLHOS

CENA DOIS

Parei para comprar um pastel. Delícia das sextas feiras. Pedi bem queimadinho, com uma crosta firme nas pontas, muita carne moída e tempero a meu gosto. Pena não ter tempo de sentar-me num daqueles bancos da pracinha e saborear meu apetitoso momento de lazer.  Fui andando depressa, de volta para o colégio. Ainda tinha algumas horas a completar minha jornada.

Olhei à frente e o vi. Uma mancha de moleque negra, sacolejando o molejo afro pela calçada. Dois lindos e alegres olhos de jabuticabas, pedintes. Perguntei: “Quer um pedaço?” – Assentiu com a cabeça afirmativamente e pegou bem depressa o pastel quase que inteiro. Ávido, despejando no pouco de carne que caía, uma alegria infinita em gratidão.  Impossível não participar daquela cena. Meus olhos adentraram para os dele. Era um menino de pouco mais de cinco ou seis anos, franzino, pernas finas.  Acariciei os seus cabelos crespos com a nítida impressão de que já nos conhecíamos!

Impossível! Há mais de vinte anos que não tenho alunos tão pequenos, mas minha mente naufragou em um passado distante demais para encontrar uma saída.

Arrisquei um comentário: “Teus olhos me lembram alguém que muito amei e com quem eu aprendi”. Só então é que notei o pai, ao lado do menino. Olhos marejados, muito feliz ao exclamar: “Professora, você me ensinou a ler e escrever na primeira série no Rui Bloem”. Somos o que amamos e aprendemos aquilo que ensinamos.


CENA TRÊS


Eram tempos de início. Crescimento profissional. Férias não eram férias, e sim, momentos para estudos. Naquele julho me inscrevi num curso de jogos teatrais. Desde o princípio minha relação com todos foi de empatia, amizade profunda. Quinze dias consecutivos de momentos felizes e criativos. No primeiro dia apresentei-me com a palavra luta, que muito tem a ver comigo.
LUTA
É ela que me decifra melhor
Meus sucessos são mais rápidos
Do que um cometa
Meus fracassos, muito estéreis
Não chegam a tomar posse de mim
Eu vou à luta!
E com ela Namoro
Brinco,
Suo,
Sofro,
Grito
Pulo!
Mas a encontro do outro lado do muro!
O que fazer?
Parece que meu mundo não tem fim!
Ainda bem, Sinal de que enquanto a luta está em chamas
A vida rola
Estou aqui!

Dois lindos olhos azuis se agitavam marejados quando terminei de ler meu poema e minha apresentação ao grupo: Elisabete, como podem me chamar. Íntimos assim, prefiro Bete. Ela também se apresentou.  Não guardei o nome, só a cor do céu que me  levava para abismos indescritíveis do olhar. Ficamos amigas, grudadas, desde o primeiro momento. Almoçávamos juntas e muitas ideias trocamos naqueles quinze dias de puro encantamento, criatividade, experiências sensoriais e psicológicas. Num dos jogos dramáticos, fui colocada ao centro e, por alguma razão, que jamais entendi, na dança gestual provocada pela música de fundo, tema do filme “Em algum Lugar do Passado” – Rachmaninoff Raphsody – eu me deitei ao chão, em posição fetal. O choro veio convulsivo em completo desequilíbrio emocional. Quando me dei conta, abri os olhos marejados e me perdi na imensidão do olhar azul celeste daquele anjo, que me abria asas ao abraço. No último dia de curso, na despedida, roda feita, tínhamos que escolher  um par para fazermos comentários do que havia sido importante em cada crescimento pessoal. Nós duas nos escolhemos com os olhos. Ficamos de mãos dadas, abraçadas, até que arrisquei uma frase: “Teus olhos me levam ao abismo de minhas memórias de infância. Penso que te conheço desde sempre!” – Ela me respondeu: “Impossível! Cheguei aqui no Brasil com oito anos de idade. Vim da França!” – Ao ouvir a palavra mágica: França, desabei a gritar: É você! É você! Simultaneamente, ela me abraçou e nós duas desabamos a chorar de alegria. Finalmente minha amiga francesa, da sala de aula do Colégio Estadual José Carlos Dias me abraçava com palavras em Português. 

Liz Rabello



VEM

Dentro dos meus olhos cabem todas as estrelas
Luzes e cores do universo em flores
danças e sons de violinos e tambores

Dentro dos meus olhos cabem todos os amores
crianças bailando e sorrindo dores
cantando em serenatas doces e sabores

Dentro dos meus olhos cabem todas as pessoas
mãos que se ajudam a atravessar estradas
caminhos tortuosos de união e luzes... Sons de paz!

Vem para dentro dos meus olhos!


CENA QUATRO

OLHOS ÚMIDOS
DAS JANELAS DO PASSADO
 “Espelho, espelho meu, quem é mais feia do que Eu?” Não, nunca me achei feia, nem mesmo bela. Qual a visão de mim mesma? Por mim? Na ausência de espelhos, numa infância muito pobre, como conseguia me saber? Penso que sempre me vi pelos olhos úmidos de emoção de meu pai. Era puro amor, encantamento! A mais bela imagem refletida. Por suas palavras doces e elogios tinha uma imagem de mim muito agradável e segura. Sentia-me com pés no chão, mas brilhante como a mais bela estrela. Ele se mostrava “satisfeito” por eu existir. Lembro-me de uma manhã de domingo. Desenhava, como de hábito, na mesa da cozinha, com meus lápis coloridos de dez centímetros cada, apenas meia dúzia, que eu cuidadosamente usava. Meus pais não podiam comprar outros. Uma visita, um amigo de meu pai. Ele me apresentou ao outro de uma forma efusiva, alegre, calorosa, dizendo o quanto estava “sastifeito” pela princesa que eu era, uma criança inteligente e criativa. Eu o corrigi: “Pai, não é assim que se fala”. Corou, nada mais falou. Quando o amigo foi embora, sentou-me em seu colo, como sempre fazia, e me disse baixinho: “Nunca mais me corrija na frente de ninguém, faça isto quando estivermos sozinhos”. Até hoje me lembro de como fiquei triste comigo mesma e do quanto me senti feia dentro dos seus olhos úmidos. Fico magoada cada vez que me lembro disto e sei que jamais amei alguém tanto quanto amei papai. Hoje sou professora de Português e a primeira lição que ensino aos meus alunos de quinta série é a de respeitar o jeitinho de falar de nossos pais, avós, amigos. Se você sabe o padrão culto da língua materna, use-o, sem constranger ou corrigir, pois palavras não nasceram para ferir ninguém.





CENA CINCO

O OLHAR DE UM CÃO

Ao longo de toda minha vida, tive, realmente, amigos fiéis, leais, amorosos. Amei e fui amada por familiares mais próximos e queridos, que partiram por conta da roda viva da vida, que nos traz para esta esfera e nos leva embora. Amo e me sinto amada pelos que aqui estão: filhos, neto, nora, tios, primos, amigos do dia a dia, reais e virtuais, inúmeros alunos, do passado e do presente! Mas nada, absolutamente nada, pode ser comparado ao olhar de um amigo canino... É puro amor, deleite, carinho, caridade, entrega sem cobranças, sem egoísmo, sem vaidades, sem rancores, abanos de rabinho com perdão, proteção, confiança, petição: “Ama-me porque eu te amo”- Eu digo. Ele não: “Amo, porque amo”. Simples assim! Penso que se o mundo canino falasse, as palavras de Cristo seriam mudadas: “Ama teu próximo mais do que a ti mesmo!”



CENA SEIS

APENAS UM BORRÃO... NÉVOA SEM CONTORNO!

Que olhos bonitos que você tem” Ela me disse quando tirei os óculos. E naquele instante seu rosto era o borrão mais lindo que eu já vi...!
(Leonardo Brasiliense, in Angústias da Juventude)

Estava correndo como sempre. Salão de beleza, cabelos arrumados, compras, levar o carro para o posto, encher o tanque de combustível, para mais tarde realizar minha viagem de costume para a chácara. Gosto de cuidar de minha aparência física, mas a mente e o coração devem estar em sintonia com memórias boas, costuradas ao sabor da imaginação e do encanto. Quero que minha vida seja repleta de atos e pensamentos bons, que transmitam aos jovens a certeza de que podemos modificar algo que nos faz sofrer! Ela me acenou a mão de longe. Chamou minha atenção com um sorriso farto, feliz! Uma linda mulher! Parecia-me familiar o brilho dos olhos, algo escondido naquele semblante que me transportava ao passado! “Sabe quem sou, professora?” – Não, não sabia de quem se tratava. Abraçou-me. “Fui sua aluna na terceira série, muito magrinha, cabelos Black Power, óculos de fundo de garrafa, míope. Sou a Josy.” Contou-me que passara por uma cirurgia recentemente e que ao se ver refletida no espelho pela primeira vez, sem o óculos, só se lembrou de mim e de minhas palavras guardadas na memória como um ato de fé e de esperança no futuro. Imediatamente, sorri! Vieram à tona todos os sentimentos bons que nos uniu, naqueles tempos inesquecíveis! Travestido de palavras novas, o Bullyng  sempre existiu. Adolescentes são muito cruéis e não deixam escapar nada para ferir amiguinhos indefesos. Era assim com Josy. Rostinho de contornos marcantes, bem idealizados por Deus, sorriso doce, inteligência farta, tudo escondido por trás daquele imenso óculos de lentes grossas! Um dia, voltando de uma de suas tarefas de monitora da sala de aula, sofreu gozações e palavras impiedosas dos coleguinhas de classe. Não tive dúvidas. Ela estava na frente deles, junto a mim. Eu lhe pedi que os olhasse bem, um a um, e me dissesse o que via. Ela balbuciou palavras entrecortadas de elogios, dizendo que só conseguia enxergar pessoas lindas. Ao mesmo tempo em que a classe lhe dizia que ela não era tão bonita assim com aquele óculos. Pedi licença e o tirei para todos verem como Josy era bela! Só que então quem passava a ser apenas um borrão enevoado eram os amiguinhos que ela anteriormente elogiara. “Estão vendo, crianças, para Josy ficar linda aos seus olhos, vocês viraram névoa sem contorno aos olhos dela. Existirá o dia em que ela vai fazer uma cirurgia e poderá vê-los e ser vista por vocês, tais como todos são: lindos!”
Liz Rabello


CENA SETE

OS OLHOS DE UM CÃO SÃO CONFIÁVEIS AOS OLHOS DE UM PEIXE...

NADA PARA MEU OLHAR

Olhe nos meus olhos
E verás a luz
por trás das pálpebras
é puro amor

Real na dor
Sutil no apelo
Pleno desejo de fome ceder
mas não envergo

podes confiar amigo
que sei conter-me
fidelidade é meu traço único
união e afeto minha cumplicidade!

Sou capaz de dividir
Somar só se for afetos
Subtrair só dores
Multiplicar amores!

Entre todos sem arestas
preconceitos nem pensar
Que eu só sei amar
Vem nada, nada para meu olhar!

Liz Rabello